O Comunista e a miséria

Sou comunista desde que lembro ter suficiente consciência política e um mínimo de leitura para essa auto determinação. Aos 14 anos me filiei ao PCB e mesmo sem poder votar fiz assídua campanha para meu candidato, na época, Roberto Freire que, diferentemente de mim, tomou outros caminhos e hoje é a antinomia do marxismo e do movimento político que lhe dá vazão prática: o comunismo. Hoje não possuo partido. Não por desacreditar na política ou por acreditar que existe possibilidades de mudanças efetivas sem partidos, mas simplesmente porque observo não haver partidos no campo do marxismo que de fato mereçam tal denominação.

Mas esse relato está longe de ser o centro daquilo que pretendo me reportar, na realidade apenas serve para que o leitor saiba que quem lhe escreve é de fato um comunista autêntico e incorrigível e que passou por todas as provações impostas pelo tempo que me colocou diante do colapso do socialismo no leste europeu. Ainda assim, me orgulho de nunca ter nem mesmo flertado com outra concepção filosófica que o marxismo ao qual me mantive sempre leal apesar de ser essa lealdade sempre aberta ao debate e aos estudos de outros autores não marxistas os quais, sem eles, não poderia me afirmar quem sou, por não conhecê-los.

O que me leva, enfim,  a escrever essas linhas foi um fato corriqueiro e tão pitoresco quanto frequente, mas que só agora me vejo disposto a escrever sobre o mesmo. Jogando xadrez pela internet notei que meu oponente ficou surpreso ao saber que eu era comunista. Ele salientou que parecia haver uma contradição entre eu ser comunista e possuir um Ipad da Apple o qual seria, segundo ele, um símbolo do capitalismo. Respondi-lhe que sua colocação mostrava, de fato, pouco conhecimento sobre ser comunista e que como comunista eu não via qualquer contradição de usar uma mercadoria de uma empresa capitalista, pois basicamente todas as mercadorias são feitas pelo modo capitalista de produção em nosso tempo. O que ele sugeria? Que eu abandonasse o universo das mercadorias e vivesse a pão e água (que embora também sejam mercadorias, talvez sejam menos “símbolos” do capitalismo)?

Para encerrar o debate apenas lembrei-lhe de que o Ipad era feito na China - país dirigido por um partido comunista - e que então a incoerência seria dele em usar um produto feito em um país comunista e se dizer capitalista. Confesso que essa resposta foi apenas uma saída retórica para um debate que não poderia produzir qualquer efeito positivo nas condições limitadas de tempo e espaço as quais estávamos colocados. Posteriormente, descobri que meu oponente era igualmente fraco e incoerente na estratégia do xadrez e após esse jogo ele nunca mais desejou uma outra partida comigo.

Porém, esse fato que ocasionalmente sempre bate em minha porta creio eu, mereça um esclarecimento a todos aqueles que muito embora se dizem não comunistas, não leram Marx e nem mesmo sabem o que pensam e qual mundo os comunistas defendem.

O comunismo não é nem a defesa e nem a valorização da pobreza e dos pobres. Somos contra a existência da pobreza e dos pobres porque sabemos que ambos são produtos de relações injustas de exploração conduzidas por uma elite dominante que acumula riqueza através de relações sociais de produção objetivas e mantidas sobre um Estado que lhe garante a propriedade privada dos meios de produção.

Assim, um comunista não deseja que todos sejam igualmente pobres, ao contrário, desejam que todos possuam oportunidades iguais em um mundo onde a exploração do trabalho seja abolida e assim as relações sociais e a própria vida possa vir a ter um verdadeiro sentido e significado para os Homens.

Os comunistas também não possuem qualquer oposição à tecnologia de ponta, nem no uso cotidiano e nem na produção. Para nós está claro que a tecnologia não é nociva, porque ela mesma é uma criação humana e, assim não possui desejo e ação próprias. Assim, um robô não rouba um emprego e nem é a informática a grande responsável pelos altos índices de desemprego dos países industrializados. Sabemos que essa é uma falácia das elites dominantes que querem tirar da esfera da luta de classes a questão do desemprego para afirmar que o mesmo é “estrutural” e “inevitável” e que elas - as elites - inclusive lamentam esse fato, mas nada podem fazer. Na realidade, se o desemprego está na casa dos 20% no mundo inteiro uma simples redução da jornada de trabalho de 40 horas para 32 horas semanais, praticamente eliminaria o desemprego “estrutural”. Mas sabemos que o desemprego pressiona os salários para baixo e que longe de ver seu fim as elites querem seu aumento e perpetuação, pois o mesmo lhe dá condições bem agressivas de lucro através da exploração do trabalho.

Nós comunistas somos a favor da tecnologia, seu acesso a todos e de qualidade bem superior àquela que temos acesso hoje, geralmente feita para ser rapidamente superada e por isso sempre frágil e efêmera, gerando um enorme volume de lixo tecnológico altamente poluente e danoso para as economias de todos os indivíduos que são escravizados pelas mesmas necessidades que nunca são saciadas (um amigo meu me contou certa vez que já havia comprado quatro geladeiras em 10 anos e que sua avó tinha apenas uma antiga a mais de 40 anos e que gelava e funcionava melhor do que a dele...).  No mundo que defendemos, a tecnologia estará a serviço dos Homens e não a serviço do capital, será libertadora e não opressiva, será durável e não efêmera, será racional e não irracional.

Enfim, muitos acreditam que os comunistas são contrários ao consumo e que desejam um mundo quase de mosteiros onde viveríamos de forma simples e singela em um mundo quase sem cores e opções. Aqui aproximam definitivamente os comunistas das ordens franciscanas ou beneditinas. Em hipótese alguma somos contra o consumo - mesmo aqueles que são caracterizados como de bens supérfluos, isto é, os quais virtualmente viveríamos (ou melhor sobreviveríamos) sem.

Acreditamos que uma mente e uma personalidade complexa que vive uma vida ativa frequentando os mais diversos ambientes sociais não apenas pode, como deve se valer de grande variedade de vestimentas, calçados e ornamentos. Apenas somos contrários à ditadura imposta pela indústria da moda que impõe padrões sazonais de beleza e que não colocam à disposição dos Homens variedade e pluralidade, mas sim sentenciam o que é o belo e o que deve ser usado por todos e condenam à fogueira aquilo que há um ano elas afirmavam ser o máximo da beleza.

Acreditamos na possibilidade de um mundo onde os Homens possam desenvolver uma autentica personalidade e a partir da mesma usar as vestimentas que ele julga serem compatíveis com sua identidade, um mundo onde o belo não seja definido pelo mercado e pela necessidade da indústria capitalista lucrar cada vez mais e - igualmente - gerar mais e mais lixo em um processo igual de obsolescência programada, também conhecido como consumismo. Assim, no capitalismo não vemos liberdade de opção, vemos imposição de padrões e uniformidade na maneira de se vestir, de se portar e de se calçar, em um pavoroso mundo massificado e sem vida autêntica.

Por fim, ser comunista em hipótese alguma está em contradição com o uso e admiração das tecnologias que estão à venda, bem como o uso e o vestir daquilo que nossa sociedade produz. Queremos deixar bem claro que não julgamos os avanços tecnológicos, nem a arte, que muitas vezes está também nos ornamentos, nas vestimentas, no talento de um músico, de um pintor ou de um romancista, como mercadorias de propriedade exclusiva dos capitalistas. Ao contrário eles todos pertencem ao gênero humano, gênero este que em sua maior parte é tão explorado e excluído pelo capital de tudo o que é belo e superior e condenado apenas ao fundamental e ao básico para a sua sobrevivência.

Desejamos que a riqueza que sempre é produzida socialmente seja de toda a sociedade e que cada Homem receba aquilo que mereça medido por aquilo que ele produz e que, assim, cada Homem possa ter a oportunidade de ser medido por aquilo que de fato é, e não por aquilo que ele possuí ou pelo poder e privilégio que ele detém.

Sabemos que esse mundo não será alcançado sem lutas e sem grandes sacrifícios, mas acredito realmente que o socialismo é a única forma de evitar que todos os nossos piores pesadelos se tornem realidade e que a Terra se envenene com o lixo do capital, que o ar se torne tóxico pela fumaça da indústria e das frotas congestionadas das grandes cidades que não possuem transporte coletivo adequado e que o gênero humano se degenere em guerras sem fim onde - como escravos das coisas que ele mesmo criou - seja capaz de negar a humanidade de seu semelhante em infindáveis holocaustos.

Como comunista, enfim, desejo um novo mundo o qual teria muito mais que falar, mas que me faltaria espaço. Como revolucionário carrego meu Ipad da Apple e tento ser, agir e me vestir de forma elegante e condizente com minha personalidade, enfim como revolucionário e para manter a coerência naquilo que acredito, uso por vezes aquilo que o gênero humano produziu de melhor e lamento - da forma mais plena e sincera - ser eu um privilegiado por ter acesso a tudo isso que um dia, espero, todos possam vir a ter. Tenho convicção que esse mundo nascerá e como comunista estaria disposto a dar minha própria vida para que esse mundo seja alcançado. Isso é ser um comunista, ou este é o comunista que eu sou.    

Carlos D’Incao

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