Entendendo a Coreia do Norte

A minha viagem e meus estudos sobre a República Popular Democrática da Coreia(Coreia do Norte) praticamente me forçam a escrever sobre este país. Fiz este singelo texto tendo como base algumas discussões com amigos e objetivando fomentar o debate sobre as relações sociais que predominam na Coreia do Norte, além de desmistificar algumas questões correntes. A análise é feita do ponto de vista do materialismo histórico. Os problemas lançados serão abordados com maior profundidade em outros textos. As fotos foram tiradas por mim mesmo.

Muitos dizem que os sistema coreano fracassou, estagnou e que o sul-coreano é um sucesso. O que você tem a dizer sobre isso?

Bom, em Seul temos favelas, em Pyongyang não. Critérios variáveis, conclusões variáveis. Vamos avaliar as formas de desenvolvimento da península coreana.A Revolução Coreana foi uma Revolução Nacional-Libertadora(e não socialista), com a participação da burguesia nacional, porém essa burguesia nacional era frágil demais para conduzir uma industrialização, e daí surgem duas opções: ou um desenvolvimento completamente dependente ou um desenvolvimento guiado pelo Estado. A RPDC seguiu o segundo caminho, ao passo que a Coreia do Sul seguiu o primeiro(aliás, ela teve uma explosão de desenvolvimento em '80 através de medidas protecionistas e a ascensão de grandes conglomerados estatais). A RPDC se industrializou através de planos, o Estado assumiu o papel que a burguesia nacional devria ter assumido(industrializante), mas nem por isso a burguesia remanescente foi expropriada - é muito importante saber disso, pois isso a torna completamente diferente da experiência da URSS de Stálin que alguns costumam estabelecer comparação. Segundo Kim Il Sung, esses burgueses se tornam "trabalhadores socialistas" ao associar-se à cooperativas(de produção, de vendas, investimentos, produção-vendas - situação em que muitas vezes eles acabam se sobressaindo em relação a membros menos abastados das cooperativas). E recentemente apareceu um novo setor do comércio que é formado por aqueles que vão a China(e outros países) e de lá trazem bens de consumo, inclusive muitos quadros do Partido que viajam muito ao exterior estão se tornando "grandes comerciantes" e dos inspetores que deveriam reprimi-los muitos se tornam parte do negócio, já que o suborno não é incomum(a situação é tão complicada que inspeções especiais, em regiões especificas, tem sido feitas diretamente em nome do "Centro do Partido" e uma delas com sob as intruções de Kim Jong Un, ou seja, existe uma contradição no seio do poder já que isso coloca o status quo em risco apesar de sair de dentro dele). Não só quadros do Partido, mas principalmente funcionários do Estado e do Exército - algumas fontes afirmam que casualmente eles são realocados pelo próprio Estado para trabalhar no mercado(nota: burocracia adquirindo caráter social definido, entrando efetivamente na produção de capital, e se tornando "coveira do socialismo"?). Comparo com a Venezuela, lá se desenvolvem x formas de poder popular, setores são nacionalizados, porém ao mesmo tempo se desenvolve uma burguesia "socialista" em parceria com o Estado e que provavelmente se envolve em formas cooperativas, a chamada boliburguesia. Uma comparação com a Lìbia também é adequada, creio eu. No caso da Coreia, temos o socialismo jucheano, onde temos esse quadro de buguesia comercial(que Kim Il Sung diz ser natural para as condições do socialismo coreano) convivendo com formas socialistas de propriedade(fábricas administradas por trabalhadores ou cooperativas socialistas onde esses burgueses não podem investir para obter retornos). Não quero dizer se isso é certo ou se aquilo é errado, a questão é que se alguém quer entender a formação econômico-social norte-coreana tem que olhar pra esses fatores - ideologia não diz absolutamente nada sobre nada. Como diz a máxima dialética: a contradição é o motor do processo. No mais, atualmente a Coreia do Norte é uma economia de planejamento da escassez, garante serviços básicos para toda população, alimentação(sim, a comida é pouca porém ela é racionada e não objeto de especulação) e tem seu desenvolvimento condicionado pela condição de cerco/guerra em que vive. Teve duros problemas a partir da década de '90 com o desaparecimento da divisão internacional do trabalho do bloco socialista, alterações no comércio exterior com a China e desastres naturais. A Coreia do Sul, por sua vez, começou a "passar a frente" do norte depois da Crise do Petróleo e teve seu boom a partir dos anos '80, e ai pesados investimentos japoneses tiveram um papel importante. Isso permitiu que eles desenvolvessem produtos do campo de tecnologia, que é o que há de mais rentável desde aqueles tempos e o que permite um país se desenvolver nas atuais condições. Mas o preço é ser refém do bando de especuladores que controlam a economia mundial, basta ver a "superioridade" sul-coreana em 1997, quando essa aristocracia cosmopolita devorou as reservas do Banco Central da República da Coreia. Qualquer um que fale do "milagre coreano" ou da "superioridade sul-coreana" e não tem ideia do que seja a crise de '97(e se o faz é porque provavelmente não tem) deveria ser menos arrogante nesse asunto.

O que você pensa do Partido dirigente, o Partido do Trabalho da Coreia, e de sua ideologia?

O Partido do Trabalho da Coreia não é um Partido marxista. Também não é um Partido Comunista tradicional. O Partido surgiu de uma união entre organizações que abarcava "toda a nação", incluindo a burguesia nacional e o campesinato, não como destacamento de vanguarda do proletariado.

O Partido foi formado majoritariamente por camponeses pobres, pequenos proprietários, e facção guerrilheira de onde eles vieram dominou o Partido rapidamente, se sobressaindo em relação aos provenientes de organizações comunistas(dos quais membros-chave seriam expurgados) - a pequena-burguesia como classe sozinha é impotente e sua ação como tal é sempre a serviço da burguesia, ou seja, temos aqui um movimento caracterizado por um nacionalismo burguês progressista(até então). O problema é que a burguesia nacional coreana era(e é) muito frágil, e desse problema surgem uma série de contradições, os beneficios para a vida dos trabalhadores, a opção pelo socialismo etc - se identificaram com os interesses das massas de trabalhadores. Os quadros não estudam o marxismo, só são obrigados a estudar a Ideia Juche e o pensamento de Kim Il Sung. Não tem um método de análise, se vê armado somente com uma sólida ideologia - o que tem suas vantagens e desvantagens - formada por uma série de valores um tanto quanto vagos. Por exemplo, Kim Jong Il fala em "O Socialismo é uma Ciência" que "a essência da política sob o socialismo é o amor e a confiança", que o partido é uma "mãe benevolente" - isso não são principios ou rigidas orientações programáticas que guiam a política e sim uma série de valores mal-definidos que permeiam a mesma, ideologia pura. "Amor e confiança" não substituem a consciência política, a vanguarda como destacamento avançado do proletariado. Apesar da crítica ao marxismo não ser uma negação declarada, por fim ela acaba fazendo o mesmo de "peça obsoleta", falam das limitações do materialismo histórico como se a Ideia Juche fosse um método que tornasse o mesmo supérfluo. Os membros do Partido são selecionados somente com base nos critérios de máxima lealdade e máxima disciplina possíveis. E ter um "background político" bom e um número de façanhas que permitam a entrada no Partido garante beneficios materiais, o que afinal acaba sendo um incentivo apesar da disciplina(quanto mais leal, mais disciplinado, mais confortável) -se não são militantes fanáticos podem ser burocratas domesticados, carreiristas dedicados. Em um discurso de encerramento de uma plenária do Comitê Central(em 17/2/1975) Kim Il Sung afirmou que o Comitê Central deve ter "uma vontade e uma mente" com o Secretário Geral e que o o "espírito do Partido" se traduz na lealdade ao líder. Nesse caso é bom ter em conta que para os coreanos "Líder" é mais que um individuo, mas por via das dúvidas é bom lembrar que num Partido Comunista o Secretário Geral responde ao Comitê Central, não o contrário. O líder representa o Partido, não o contrário. Nesse discurso ele fala da liderança hegemônica como condição necessária para o Partido e etc, porém a liderança se revela no seio do conflito. Lenin teve que enfrentar Bogdanov antes de 1910 e boa parte do Partido que foi criado pelas ideias dele em 1917. Stálin enfrentou esquerda e direita para se consolidar dentro do Partido, e só se tornaria realmente incontestável depois da Guerra Mundial que fortaleceria sua imagem e enfraqueceria a estrutura do Partido(desorganização, morte de quadros, maior militarização, etc). Kim Jong Il afirma em um artigo do Rodong Simun de 25/12/1995 que "a moral comunista encontra sua maior expressão na lealdade ao líder" e em várias ocasiões fala que essa lealdade caracteriza o comunista. Esse é mais uma "exclusividade" dos coreanos. Lenin disse que "nossa moral está completamente subordinada aos interesses do proletariado na luta de classes", sintetizando bem uma ideia inerente ao movimento comunista e já expressa no Manifesto - o comunista deve ser leal aos interesses históricos do proletariado. O marxismo se pergunta quais são as raízes desse culto ao líder, sua função na sociedade coreana - dizer que é "delírio coreano" é insatisfatório pois isso é produto do processo histórico. Esse culto ao líder na Coreia do Norte, que adquire amplas dimensões ideológicas(ou seja, vai bem além de Lenin, Stálin ou Mao) e pode ser compreendido pela situação internacional no qual surgiu e se mantém(conflito sino-soviético, pouco apoio do exterior e cerco). Vejo como uma forma de bonapartismo, pois existe uma burguesia nacional porém frágil demais para exercer qualquer dominação; é produto de uma estrutura de classes frágil e de um campesinato amplo, afinal os camponeses, base da luta guerrilheira, são um ótimo apoio para caudilhos. A necessidade do "GRANDE LÍDER" vem diretamente do já explicado coletivismo, da "burguesia socialista", da estrutura de classes da sociedade coreana. Isso tudo além da fragilidade teórica do Partido, a tradição, a forte influência do confucionismo e a guerra que assentam esse culto. Na Venezuela antiga oligarquia perde espaço, surgem formas de participação popular e um caudilho ganha mais e mais poder ao passo que fica mais e mais importante para o processo, e aqui novamente uma comparação com a Líbia também seria cabível. Como em Cuba temos uma vanguarda guerrilheira que ao se deparar com a nulidade da burguesia nacional em relação ao imperialismo se vê praticamente obrigada ao se identificar com as classes mais pobres - nacionalismo revolucionário e populista do Terceiro Mundo produto da impotência da burguesia nacional frente a rapina imperialista, e que no caso se pintou de vermelho devido a aproximação com os comunistas coreanos e o suporte das tropas soviéticas - o contexto da nascente Guerra Fria é fundamental. Kadafi, que esteve no campo de influência da URSS, por pouco também não "virou comunista", não o fez porque não havia um movimento comunista consolidado na Líbia para ele se apoiar no pós-revolução).



Se não é marxista, porque você apoia?

Olha, eu não sou o Papa, não apoio governo tendo como critério a adesão deste a minha Igreja. Pode ser um problema para a direção, porque a concepção que se desenvolveu sob o leninismo é de que a revolução é dirigida conscientemente por aqueles que conseguem interpretar as forças sociais e as tendências da história, estes que por sua vez a Ideia Juche, se não nega, subestima com o seu "o homem pode tudo" Me opor a uma experiência histórica por ela não ter personagens marxistas a sua frente é no minimo um tanto antimarxista. Marxismo é analisar as relações materiais de produção, o desenvolvimento das forças produtivas e a correlação de forças, as contradições de classe, e assim, depois da análise com bases nesses fatores, formular sua posição. A história caminha independente da vontade dos líderes marxistas, quer dizer, uma posição como essa que eu nego é recuar a ideia de que a história é feita meramente por lideranças - uma ideia extremamente primitiva. Eu apoio a RPDC pelo fato dela representar resistência frente a ordem mundial controlada pela elite das transnacionais, pelos apostadores das finanças e os senhores dos bancos. Sou pelo direito do povo coreano optar não sofrer com inflação e desemprego por culpa de meia dúzia de especuladores como ocorreu na Coreia do Sul em 1997. "Marxismo" ou "ser marxista" não é critério político.

Existe uma monarquia na Coreia do Norte?

Definitivamente não. Kim Jong Il não ocupa nenhuma posição acima do resto do Estado. Kim Jong Il é Presidente da Comissão de Defesa Nacional, cargo indicado pela Assembleia Popular Suprema(eleita por voto popular) e que faz parte do triunvirato fundamental que forma o poder executivo, antes concentrado no cargo de Presidente ocupado por Kim Il Sung, o pai de Kim Jong Il. Existe, sim, muito nepotismo, como fica claro na indicação de Kim Jong Il de seu filho para vice-presidente do seu cargo e vários outros parentes dele ocupando cargos chave diretamente relacionados a ele(sua irmã em sua Comissão; antigamente seu filho Kim Jong Nam como Ministro da Segurança Pública). Resta saber, agora, se ele vai conseguir emplacar o filho como sucessor de sua liderança. Mas vale dizer que essa carga negativa de nepotismo é o que nós achamos, já que ai também tem muito da tradição coreana impregnando a vida social, aliás, essa questão da familia e do "de pai para filho" está muito presente na sociedade coreana como um todo e o Estado inclusive já fez campanhas incentivando filhos seguirem as carreiras dos pais - e em geral o que ocorre é que os intelectuais seguem intelectuais, os operários seguem operários e os camponeses seguem camponeses(as "três classes" em que se divide a sociedade, oficial e formalmente).

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